sábado, 13 de fevereiro de 2010

sobre a fome.

Volto do seu sonho, do seu corpo, como alguém que perdeu as pegadas na maré, na noite interminável. Como quando entro na livraria e o dia vai avançando, em qualquer hora haverá uma porta fechada, o escuro lá fora, o relógio. Como quando sei que o vinho vai acabar, o copo uma ampulheta, e você ficou lá dentro da memória. Como quando o charuto aceso está chegando aos seus dois terços, o telefonema tem que acabar, é hora de ir embora, e eu volto só, eu acenando para o nada.

Saio do sonho como quem não acredita, o peso da memória me arrastando, e tento aos poucos o café, o pão, a xícara branca com o sol das nove horas e o mundo ambíguo em volta, sem lábios.

É como começar a andar e os olhares que busco se desviam, o que é claro e intermitente na rua me perturba e foge, a cor das coxas e dos olhos.

É quando o fim de tarde se aproxima e perco tempo, me perco nesse labirinto de vozes mudas, olhos mudos, bocas que quero pintar mas não existem.

Descanso num café, numa página, numa taça. E escapo das ruas quando a noite é inútil. Quando o bar, onde o bar.

À margem do fascínio, na espera, no alimento do tempo, me arrisco a deixar de ser. No balcão, à beira da fronteira, conhaque e alguma coisa incerta no exercício das horas. O tédio da experiência nula.

O gosto pela ausência, a farsa do corpo que exaspera. A musa passa e eu não existo, meu corpo que se estende rumo a tudo. E temo que o desejo seja vício.

Imagino a fome desses passos, seu movimento alado. Eu tenho aquilo que falo, o que aniquila. Eu posso esse vislumbre em meio aos peitos. Eu tremo com essa língua oculta, a boca carne, rubra, lúbrica. Quando o corpo.


Renato.

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